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Aborto - Direito e proteção à vida.

Hoje, 28 de setembro, é o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. Criada em 1990 em meio a movimentos de redemocratização, a data é marcada pela realização de atos políticos, mobilizações e discussões organizadas por mulheres em busca de direito ao aborto legal e seguro.

O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde acredita que o assunto deveria ser debatido sob a perspectiva da saúde pública, com base nos dados epidemiológicos e técnicos pertinentes à nossa sociedade. No entanto, vemos um aumento significativo nas investidas recentes contra a difusão de informações relacionadas a direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o que torna as disputas no campo político pela legalização do aborto cada vez mais difíceis.

Neste mês, a revista Azmina foi denunciada ao Ministério Público após publicar uma reportagem baseada em dados públicos da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre aborto. A reportagem, publicada no dia 18, reúne recomendações da OMS sobre como interromper a gravidez de forma segura, dando exemplos de como o procedimento é feito em locais onde é legalizado. A publicação também lembra que, ainda que o procedimento seja crime no Brasil, há ao menos três situações em que é possível realizá-lo legalmente: em casos de estupro, de risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto.

Nas redes sociais, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tratou o texto como uma “apologia ao crime e que pode colocar tantas meninas e mulheres em risco”. A ministra omite no entanto que o aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país e que o procedimento clandestino vitimiza cerca de 200 mulheres por ano, de acordo com dados do Ministério da Saúde em 2016. Já em países onde houve a descriminalização, a mortalidade por aborto tende a zero.

A ideia deturpada de que a difusão de informações provenientes de fontes seguras coloca mulheres em risco só evidencia a desqualificação de nossos representantes e o desconhecimento da realidade das populações mais vulneráveis.

As repercussões contrárias à reportagem também ignoram que o acesso a direitos sexuais e reprodutivos no Brasil seja falho, sendo a contracepção de longa duração um desejo dificilmente alcançado por mulheres marginalizadas. Há mais oferta de métodos contraceptivos de curta duração (preservativos e pílulas), que são menos eficazes quando usados isoladamente. Neste contexto, não surpreende que mais da metade das gestações no país ocorram sem planejamento.

O Brasil não é um caso isolado e espelha a situação de toda uma região. A América Latina e Caribenha possui a maior taxa de aborto e gestação não planejada do mundo, e 97% de suas mulheres vivem em países com leis restritivas e punitivas ao aborto, afirma um levantamento do instituto americano Guttmacher, referência em estudos de saúde e direitos reprodutivos.

Mais de 22 mil mulheres morrem todos os anos no mundo em decorrência de procedimentos clandestinos, aponta o instituto. Defender a legalização do aborto não é apenas uma luta por um direito como também por menos mortes evitáveis.

Trata-se de uma prática corrente, feita por mulheres comuns, em grande parte mães de família trabalhadoras. A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 revelou que cerca de meio milhão de mulheres recorreram à prática em 2015, sendo a maior parte ilegalmente, fora das condições favoráveis de proteção à saúde. O estudo mostra ainda que uma a cada cinco mulheres em idade reprodutiva já interrompeu a gravidez. Dessas, a maioria é religiosa e tem pelo menos um filho.

A maior frequência se dá entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, evidenciando recortes geográficos e raciais. Mulheres negras morrem duas vezes mais do que mulheres brancas em decorrência de complicações de abortamentos, o que evidencia a associação entre exclusão social, racismo estrutural e institucional e risco de morte.

Mesmo em situações previstas por lei, o acesso ao procedimento é muitas vezes inviabilizado. Segundo o artigo “O direito ao Aborto no Brasil e a Implicação da Atenção Primária à Saúde”, publicado na revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade em fevereiro de 2019, dos 68 locais que oferecem o procedimento nestes casos, apenas 37 funcionam e a maioria deles é localizada na região sudeste.

É sintomático que, no último ano, os estados que mais buscaram por aborto em pesquisas no Google tenham sido justamente Acre, Roraima, Amapá, Maranhão e Amazonas. Entre os principais termos pesquisados, estão métodos e práticas abortivas arriscadas, como o uso de fármacos e ervas sem orientação médica.

Ao mesmo tempo que o assunto é coibido no debate público, a interrupção voluntária da gravidez motiva a redação de diversos projetos de lei, geralmente contrários à prática e desconectado das reivindicações populares. Desde fevereiro de 2019, quando começou o ano legislativo, foram submetidas 28 propostas relacionadas, sendo que 12 delas buscam restringir os direitos já alcançados no Brasil.

Um dos projetos mais ameaçadores à liberdade das mulheres é o PL 352/2019, proposto em maio deste ano com a intenção de impedir a interrupção gestacional e promover a internação psiquiátrica de mulheres grávidas mediante laudo médico que ateste “propensão ao abortamento ilegal”, baseado nas “condições sociais e psicológicas” da gestante.

O texto propõe ainda que as mulheres passem por atendimento médico, no qual seriam obrigadas a observar sinais vitais do feto, como batidas do coração, além de um atendimento religioso para dissuadi-las da necessidade da interrupção. A iniciativa recebeu críticas de especialistas que a consideram inconstitucional, pois submete qualquer mulher que tenha uma gravidez indesejada a uma tortura psicológica sob a possibilidade de ser internada compulsoriamente.

Iniciativas como essa estimulam a clandestinidade: a falta de políticas públicas associada à vulnerabilidade social cria um contexto de isolamento para a mulher que vive uma gestação indesejada. Um estudo da OMS publicado na revista The Lancet em 2017 mostrou que a restrição ou proibição do acesso não reduz o número de abortos, mas aumenta a incidência de procedimentos inseguros, podendo levar a óbito. O Estado, ao não mediar a questão sob rigor técnico, negligencia um dos maiores problemas de saúde pública do país.

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez no país começou a ser discutida no STF (Supremo Tribunal Federal) em agosto do ano passado. Nesta ocasião, o Coletivo Feminista, juntamente com outras organizações feministas e pró direitos das mulheres, elaborou uma cartilha com os principais argumentos apresentados a favor dos direitos reprodutivos das mulheres. A publicação pode ser consultada neste link. Ainda não há data para que seja realizado o julgamento que questiona a criminalização do procedimento. Por ora, a pena para quem descumpre a lei pode chegar a três anos de prisão e ser aplicada também a quem facilita a interrupção da gestação.

É responsabilidade de todos zelar pelo direito à vida e pela liberdade de escolha. Fica evidente que, para isso, é preciso priorizar estratégias de redução de desigualdade social, acesso fácil a contracepção, serviços de aborto legal humanizados e qualificados para ajudar as mulheres escolher quando exercer a maternidade. Reivindicamos enquanto cidadãs, profissionais de saúde e militantes feministas a ampliação da previsão legal da interrupção gestacional e a desmoralização do debate político. Nos posicionamos pelo estado laico, pelo direito à escolha, pela vida das mulheres.

Assinam esse texto: o ambulatório e o núcleo jurídico do CFSS.

Referências:

1. LEITE, I.C. Gupta, N. Assessing regional differences in contraceptive discontinuation, failure and switching in Brazil. Reproductive Healthvolume. 2007.

2. Nascer no Brasil: Inquérito Nacional Sobre Parto e Nascimento. Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 2016.

3. Trajetórias e Argumentos Feministas pelo Direito ao Aborto no Brasil http://www.cfemea.org.br/index.php/mobile-colecao-femea-e-publicacoes/publicacoes/4733-trajetorias-e-argumentos-feministas-pelo-direito-ao-aborto-no-brasil .

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